o silêncio das inocentes

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o silêncio das inocentes

Há dias, quando lia uma notícia que uma menina de 12 anos tinha ficado grávida de um presumível homem adulto, vi imensos comentários a culpabilizar a criança: que com aquela idade (reforço que tinha apenas 12 anos) já sabia mais que muitas mulheres adultas e que, mentiu, aquando o seu envolvimento com o homem, dizendo que tinha 16 anos. Acontece que, quando o homem soube da sua idade real, continuou a praticar os atos sexuais, inclusivé engravidou a criança.

Eu até posso acreditar que muitas meninas de 12 anos sejam maduras e consigam parecer mais velhas e que, em alguns casos, até tenham conhecimentos da sexualidade que consigam alterar a verdade dos factos para um homem menos astuto e inteligente e até consigo entender que, como há muito homem desesperado, a invenção ou ocultação da idade perante a menor, tenha sido um fator atenuante no início da relação, mas olhando para o caso com mais atenção, reparo em dois ou três aspetos que me fazem refletir:

educação, sexo e confiança

Esta criança de 12 anos, não tem nem nunca terá culpa dos abusos sexuais que foram cometidos. A educação da sociedade portuguesa ainda está muito agarrada aos antigos costumes em que a mulher era culpada por qualquer sucesso ou insucesso da sexualidade de um casal ou de um abusador. Ou seja, quando vemos os comentários à notícia, vemos muitos deles, inclusive de pessoas do sexo feminino, a escrever “agora estas miúdas vestem-se com decotes e provocam o homem”, como se os homens fossem uns animais irracionais que reagissem a impulsos sexuais incontroláveis e qualquer menina que ousasse usar saia mais curta ou decote mais acentuado merecesse que a abusassem.

Os comentários continuam, e continuo a enjoar-me. Uma senhora de meia idade diz “Com doze anos, brinca se e estuda se, não se trocam mensagens com homens na rede social. Esta adolescência está perdida. Falta lhes tudo, atenção carinho acompanhamento bons conselhos e bons exemplos. E por vezes tb falta um par de estalos.” . Se há coisa que é normal nas adolescentes é trocar mensagens nas redes sociais (que não é de todo a idade desta criança – a adolescência começa por volta dos 15 anos. Fonte: ONU). Mais uma vez, culpabiliza-se a vítima e não o agressor. E não vamos falar no par de estalos que, claro, sabemos que é medida para qualquer problema – mais uma agressão.

Isto só vem provar uma coisa: algo anda a falhar. A Educação Sexual nas escolas tem de ser rapidamente implementada: sem dogmas, sem julgamentos.

a culpa é sempre da mãe

Num comentário, lê-se “Onde está a Mãe desta menina?”. Podia ter escrito, onde está a família, os professores, mas a mãe, a mulher é que é SEMPRE responsável pelo desvio educacional das crianças.

[tom irónico] Se a criança não come, a culpa é da mãe. Se a criança não dorme, a culpa é da mãe. Se a criança decide começar a mandar nudes, a culpa, claro está é sempre da mãe.

um olhar sobre a vítima

Afastando-me deste caso e concentrando-me noutras vítimas para escrever este artigo, deparei-me que uma jornalista portuguesa está a reunir um compêndio sobre vítimas de tentativa e abuso sexual. Homens mas sobretudo mulheres, abriram a sua alma e, muitos deles, quebraram o silêncio. Estas vítimas, silenciadas durante décadas, foram alvos de abusadores das mais diferenciadas idades. Todos eles com um propósito: humilhar.

Deixo aqui um relato.

“Em outubro de 1993 uma miúda de 14 anos chateou-se com as amigas do costume e resolveu procurar novos amigos. Conheceu um grupo simpático, de outra escola, de rapazes e raparigas, que conheciam música que para ela era desconhecida, e que ela achou fascinante. Passou algumas tardes com eles, enamorou-se por um deles, e houve um dia e que lhe ligaram numa sexta-feira a perguntar se queria ir passar a tarde com eles.

Não seria a primeira vez que passavam a tarde numa garagem a fumar e a ouvir música. A miúda meteu-se no autocarro e foi ter com os novos amigos, feliz e contente.

Ao chegar ao café do costume, sentiu uma tensão estranha no ar, mas não percebeu o que era. Uma expectativa, um silêncio.

O rapaz por quem se enamorara e com quem já tinha trocado uns beijos, pediu-lhe para ir com ele buscar umas cassetes de bandas novas espetaculares. A miúda seguiu-o, sem pensar muito no assunto. Cassetes de bandas novas para levar para a garagem, fixe!

Ao chegar, o rapaz pôs música alto na aparelhagem e disse que tinha de ir à casa de banho. A miúda ficou a ouvir música e a ver cds e cassetes. Ele voltou despido da cintura para baixo e com uma erecção. Bloqueou a porta. A miúda disse-lhe que não estava interessada, nem sequer eram namorados, mas ele não se desviou da porta para a deixar sair.

Ela tentou passar por ele e ele atirou-a para cima da cama. Ele era dois anos mais velho, e bastante mais forte. Ele estava em cima dela. Ela tentou fugir, mas ele arrancou-lhe as cuecas. Por azar estava de saia, não foi muito difícil.

Sem conseguir fugir, rogou-lhe que a deixasse, que não queria, que nunca tinha feito aquilo e que não queria. Ele segurou-a com força e disse que “alguma vez teria de ser a primeira”, ela debateu-se e ele entrou nela.

Ela despedaçou-se. Deixou de resistir, ficou de corpo morto. Os olhos fugiram para o brilho de uma maçaneta dourada na porta de um armário do lado direito. A mente fugiu para um campo de flores amarelas onde estava segura e era só uma miúda.

Ele acabou e ela não se mexeu. Ele foi à casa de banho e ela não se mexeu. Ele voltou da casa de banho e ela não se mexeu. Ele disse “afinal gostaste, queres mais, é?”.

Ela voltou ao corpo e saltou da cama como uma mola, não se recorda como saiu daquela casa, mas foi direita à esplanada, os outros podiam ajudar!? Ao aparecer, desgrenhada, em pânico, a esplanada explodiu em riso.

Confusa e em choque, correu rua abaixo, apanhou um autocarro. Tremia e um fio de sangue escorria pelas pernas, para dentro das botas da tropa. Os adultos presentes olhavam para ela, mas nem um se dignou a perguntar se precisava de ajuda.

Chegou a casa e meteu-se no chuveiro, enrolada como um bicho de conta. Horas debaixo do chuveiro. Para tirar a porcaria. Mente em branco. Quando os pais chegaram, ela saiu da banheira e meteu-se na cama. Tinha febre. Ficou na cama dois dias a dormir. Doente, certamente, pensaram os pais.

Na segunda feira foi para a escola. “Se fingir que não aconteceu nada é como se não acontecesse. Será que aconteceu?”

Chegou à escola e todos riam e sussurravam. Uma amiga explicou que já toda a gente sabia que ela era uma puta. Que tinha ido para a cama com ele porque era uma puta, e se o acusasse de violação era por vingança, porque era uma puta. A puta virgem. Era virgem, mas era puta. Assim, de um dia para o outro.

Não sobraram amigas, porque as amigas de putas são putas.

Foi apedrejada e perseguida no caminho de casa para a escola e da escola para casa.

Havia um grupo de rapazes que levava revistas pornográficas para a escola, e que um dia lhas esfregou na cara, porque ela era uma puta.

Sentia que era uma pessoa diferente a cada dia: num dia era uma miúda que queria voltar a ser criança, no outro uma mulher que queria ir atrás dele com uma faca. No outro ia passar por cima daquela merda de gente toda, ia ter as melhores notas e ia ser feliz longe dali. Mas no dia seguinte queimava as pernas com cigarros e queria morrer porque a culpa era dela, porque tinha querido ter amigos, porque tinha usado saia, porque tinha correspondido a um beijo no outro dia. E tinha medo.

Levou 10 anos a voltar a ser capaz de vestir uma saia, a conseguir confiar num homem. Medo de fazer amigos. Ataques de pânico a cada “piropo” de rua. E engordou, de propósito, porque ninguém quer violar gordas, certo?

Nunca fez queixa, nunca contou aos pais, nem sequer aos amigos que fez depois. Se os pais soubessem iam pensar que tinham falhado, e eles tentavam tanto não falhar, dar-lhe o melhor que conseguiam…

Se contasse ia ser outra vez “a violada”, “a maluca”, “a mentirosa”, “a puta”.

Se ninguém souber, é mais fácil fingir que não aconteceu e viver normalmente.

Mas aconteceu. E não se vive normalmente.

E não passa.

E passaram 25 anos.”

Helena Ferro Gouveia

Espero que um dia, as vítimas, encontrem a paz que necessitam. E que este país se torne mais lutador e defensor das verdadeiras vítimas.

Photo by Charles Etoroma

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