retrato

Estás. És.

Desenhada, pintada, vista por quem te quer ver, mas apenas revista por quem tu deixas que te possa revisitar. Aos teus próprios olhos, às vezes pareces um simples bocado de papel amarfanhado, gatafunhos escondidos num sotão de um prédio num qualquer arrondissement parisiense. Para mim, digna do Louvre, apesar de não querer que lá estejas assim, desarmada e à vista de todos. Sou egoísta quanto baste para te querer na minha coleção privada de uma peça só, mas verdadeiramente não egoísta porque sei que tens muito para dar, mostrar e fazer. 

Já te conheci obra feita. Emoldurada até. Todos os retoques dados, todos os jogos de luzes pensados e repensados. Criadora de opiniões a que não dás ouvidos, ou hoje não serias quem és – não serias – e apenas almejavas ser. Estás, portanto, e posas. E eu olho-te. Como na primeira vez, como no primeiro dia. Não me canso de te olhar, de te ver – de tirar todos os segundos e minutos que posso para simplesmente te ver, e de desejar ardentemente que cada um desses segundos seja todo-o-tempo-do-mundo. Não por ter medo que te esfumes – quer da minha memória, quer da minha vida –   mas porque me dá prazer, dá-me gozo. Dá-me gozo ver as tuas expressões a mudar, dá-me gozo ver as tuas mil e uma fases serem todas apresentadas num ápice, dá-me gozo ver-te sorrir pelas coisas mais infantis e idiotas. Dá-me gozo porque estou feliz, porque também a mim me fazes sorrir por seres e estares, porque me alimentas a alma. Sacias-me não me saciando, ao fazeres-me desejar ter mais de ti, ver-te mais, ser mais contigo, lado a lado.

Apresentaste-te a mim, tal como todos os retratos de gentes importantes, como inalcançável. Como intocável, como “tem-cuidado-não-é-para-mexer”. Mas eu fui desobediente, e tu de alguma forma gostaste dessa desobediência. Aproximei-me e ousei tocar. Ousei sentir ao de leve os relevos, observar os movimentos fluídos com que te pintaram, e tu nunca me disseste “pára”. Pelo contrário, fizeste com que te tocasse mais, observasse os cantos mais recônditos, as sombras enegrecidas pelo tempo, contaste-me os teus segredos que ninguém sabia que escondias em ti, tão à vista de todos. Fizeste-me mergulhar de modo a passar para o lado de lá da moldura, e pude ver o mundo pelos teus olhos tão bonitos. Pude ser tu, nunca tendo de deixar ser eu.

Ainda hoje eu te acho inalcançável, brilhante, e quando te acho assim remeto-me à minha condição de plebeu. És perfeita à tua maneira, com todas as tuas idiossincrasias. Mas ao mesmo tempo, fizeste-me crescer e eu desejei crescer. E tenho momentos em que acho que posso mais. Em que sei que posso mais. Mas preciso que te deixes ao meu cuidado, que confies em mim, para eu poder reparar os pequenos rasgões que te fizeram, para te retocar a cor de onde tanto te tocarem te desbotaram, para te ajudar a voltar a ter aquele brilho inesgotável e ininterrupto nos olhos que tu intrinsecamente tens.

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